Visão de um policial sobre abordagem nas ruas, violência policial e excessos

Bom dia r/brasil. Policial aqui.

Para evitar doxxing e identificação, não vou entrar em detalhes sobre minha entidade/lotação. Apenas que sou policial no Rio de Janeiro e gostaria de compartilhar um pouco da minha vivência com vocês e meu ponto de vista sobre os últimos casos de violência policial que têm sido noticiados na mídia.

Apenas para contexto: sou policial, faixa dos 30 anos, branco, mais alinhado à esquerda (sim, rs, o vegano que trabalha no açougue) e abandonei minha antiga carreira pela policial por achar que ela é uma das funções públicas mais importantes para a sociedade – desde que exercida da maneira correta.

Fiquem à vontade para fazer perguntas, mas vou apenas compartilhar algumas coisas que acho relevantes dentro desse debate.

O limiar do legal e do ilegal em uma abordagem policial

Isso é constantemente debatido em todos os círculos policiais. Seja PM, PC e PF (desculpa, carcereiro não é polícia, rs). Na nossa profissão, nós estamos constantemente andando bem no limite do legal e do ilegal pela natureza do nosso trabalho. Se você dosa erroneamente a coerção um pouco para cima, vira abuso e você se torna um criminoso. Se o faz para baixo, você pode ser até visto como corrupto ou não cumprir seu dever de agir. E, em muitos casos, se você não é enérgico o suficiente e se impõe em determinadas situações, você coloca sua vida em risco.

É uma equação extremamente complexa que você só compreende quando você se torna policial e faz uma abordagem com pessoas problemáticas. É fácil criticar o trabalho policial quando você se baseia nos 95% das abordagens que feitas no cotidiano: você aborda o cidadão – na rua, numa delegacia, num cumprimento de mandado, numa operação – e ele colabora, mesmo que a contragosto. É o padrão na maioria esmagadora das vezes. Mas sempre tem os 5% que dá merda.

E sim, recebemos treinamento para esses 5% (um treinamento bem limitado e sem reciclagem) e bom senso todos deveríamos ter. Mas, mesmo nas melhores policias do mundo, quando a merda bate no ventilador em uma abordagem é um desafio absurdo. E há um abismo entre o que fazemos, como somos interpretados e como isso é noticiado.

Lembrando: não estou defendendo violência policial imbecil, idiota e desnecessária. E não são casos isolados. O vídeo do policial executando o ladrão de sabão ou jogando o morador da ponte são brutais e ridículos. A violência policial existe, ela é uma herança dos tempos em que não havia tanta gente com celular nas ruas, tantas câmeras de vigilância em prédios e estabelecimentos e, mais recentemente, as câmeras corporais. Era uma época sem lei mesmo em que a polícia fazia o que queria. Mas muitas vezes somos obrigados a usar a força e, dependendo do corte que alguém faz da ação policial, parecemos completamente errados.

Isso gera dentro das forças policiais um cenário de “toda a sociedade está contra o nosso trabalho”. Não é incomum você ter casos de colegas que agiram de acordo com o protocolo e de forma correta saírem na mídia como vilões em razão de um vídeo em rede social que pega um momento específico da abordagem ou por conta de uma reportagem um pouco mal apurada. Eventualmente, nesses casos, você acaba absolvido por outras provas: um vídeo completo de uma câmera de segurança próxima, a própria câmera corporal, testemunhas, etc. Só que essa absolvição/resolução não repercute da mesma forma.

A dinâmica de uma abordagem policial com resistência

Como eu disse antes, a imensa maioria das abordagens não dá problema. E uma boa parte das que dá você consegue resolver no papo. Eu sou conhecido entre meus pares por não levantar a voz e desenrolar tudo na conversa. Mas, infelizmente, nem sempre é possível.

Já participei de cumprimento de mandados de prisão em que adolescentes ou idosos simplesmente não queriam que determinada pessoa fosse presa (um pai, um filho, etc) e nos confrontavam fisicamente. Tentavam impedir a nossa entrada, atrapalhavam a algemação, bloqueavam o caminho para tentar fazer o alvo do mandado fugir. Nessas horas, não há o que fazer. Somos obrigados a usar a força.

A minha força policial não usa câmera corporal, mas os colegas de outra força que usam se veem ainda mais obrigados a agir nesses casos. Porque, caso você simplesmente deixe de agir numa ocorrência dessas, você também pode ser punido severamente.

Digamos, como exemplo, que eu precise prender uma pessoa e o pai dela, de 70 anos, tente nos impedir trancando a porta e ficando atrás dela. Não temos alternativa, se a voz de comando não funcionar. Vamos arrombar aquela porta. Vamos arrancar o senhor de 70 anos do caminho. Se ele tentar nos agredir fisicamente, vamos imobiliza-lo, leva-lo ao chão, fazer o que for necessário para cessar a resistência, dentro dos limites da legítima defesa.

Eu já fui salvo pela câmera de um condomínio de casas numa situação como essa. No meu caso, era uma mãe (na casa dos 60) tentando impedir a prisão de uma filha (que tinha uns 30 e pouco). Ela tentou bloquear nosso caminho para que a foragida pulasse o muro atrás da casa e se evadisse. Eu tirei a idosa do caminho, ela se agarrou em mim e empurrei ela no chão. Ela caiu, ficou com o rosto todo machucado e começou a chorar. Ela tentou novamente nos agredir, eu tive que imobiliza-la no chão e segurá-la ali um tempo. Os moradores vieram e começaram a me filmar. Não deu mídia, mas tive que responder na corregedoria. Claro, quando o vídeo da câmera de segurança do condomínio chegou, fui inocentado e elogiado por ter contido a idosa apenas com ferimentos leves. Não gosto de fazer isso, mas faz parte do trabalho.

Um ponto relevante que preciso destacar aqui é que, quando nos envolvemos em uma situação de luta corpo a corpo, não podemos ser “bonzinhos”. Não estou falando aqui de espancar a pessoa por nada, mas de realmente usar a força fazê-la parar. Em treinamentos de força policial em todo o mundo, a luta corpo a corpo é extremamente desencorajada porque não se entra num combate corporal armado. A chance da pessoa, mesmo aparentemente mais fraca, conseguir pegar a sua arma e matar você é grande. Há vários vídeos disso acontecendo aí na internet, como o que rolou em SP no ano passado (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/06/14/homem-que-roubou-arma-de-policial-e-atirou-em-dois-pms-na-zona-leste-de-sp-vira-reu-justica-marca-audiencia.ghtml). Ou como rolou com dois PRFs que abordaram um deficiente mental no meio de uma rodovia e tentaram contê-lo na mão. Ele era forte, pegou a arma e matou os dois - https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2022/05/18/dois-policiais-rodoviarios-sao-mortos-a-tiros-na-br-116-em-fortaleza.ghtml.  

Há alguns protocolos que ajudam nisso. Numa situação mais calma – só um suspeito desarmado reagindo – você pode sacar sua arma, dar para o seu colega e ir imobilizar o suspeito sozinho. Mas nem sempre é possível fazer isso por conta da dinâmica da situação, do lugar, da quantidade de pessoas envolvidas, da velocidade que as coisas acontecem.

Estou falando isso tudo porque, ontem, foi divulgado o vídeo dos policiais que abordaram pai e filho com uma motocicleta irregular e foram atacados no momento da apreensão (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/12/05/camera-corporal-de-pm-registra-comeco-de-abordagem-que-terminou-com-idosa-e-homem-agredidos-em-barueri.ghtml). A imagem da idosa sangrando – como se tivesse sido agredia pelos policiais – saiu em todos os jornais e ganhou um puta destaque. Vendo o vídeo todo da ocorrência, eles agiram da forma correta. Em poucos momentos ali eu vi excessos, vi sim dois homens marrentos e uma família que ficou desesperada para protege-los e tentou ficar entre a polícia e os suspeitos.

Enfim, só queria deixar aqui um pouco da minha opinião e o texto ficou gigante. Se quiserem fazer qualquer pergunta sobre cotidiano policial, vou tentar responder ao longo do dia.  

EDIT 8h30 - Pessoal, vou dar um pulo na academia para treinar. Gostando do debate. Na volta respondo mais.